Lúcio Flávio Pinto- A Vale merece mesmo ser a pior empresa do mundo?

No dia 26 do mês passado a mineradora brasileira Vale foi eleita a pior corporação do mundo no Public Eye Awards, com sede em Zurique, na Suíça, criada pelo Greenpeace suíço e a Declaração de Berna, que se apresenta como “o Prêmio Nobel da vergonha corporativa mundial”. Desde 2000, o Public Eye é concedido anualmente à empresa vencedora, escolhida por voto popular, em função de problemas ambientais, sociais e trabalhistas, durante o Fórum Econômico Mundial, na cidade suíça de Davos.
A antiga estatal Companhia Vale do Rio Doce foi indicada junto com mais cinco empresas internacionais: Barclays, Freeport, Samsung, Syngenta e Tepco. Das 88 mil pessoas que votaram, através da internet, 25 mil escolheram a Vale. As entidades que lideraram a campanha contra a mineradora a apresentaram como uma multinacional típica, presente em 38 países e com impactos espalhados pelo mundo, o que serviria para atrair o interesse de moradores dessas nações.
Os organizadores do prêmio levaram em consideração a participação societária que a Vale passou a ter, em meados de 2010, no Consórcio Norte Energia, responsável pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, “fator determinante para a sua inclusão na lista das seis finalistas” do prêmio.
Na nota que distribuíram a respeito, as entidades que pediram votos contra a mineradora disseram que a vitória da Vale foi comemorada em nome das “milhares de pessoas, no Brasil e no mundo, que sofrem com os desmandos desta multinacional, que foram desalojadas, perderam casas e terras, que tiveram amigos e parentes mortos nos trilhos da ferrovia Carajás, que sofreram perseguição política, que foram ameaçadas por capangas e pistoleiros, que ficaram doentes, tiveram filhos e filhas explorados/as, foram demitidas, sofrem com péssimas condições de trabalho e remuneração, e tantos outros impactos, conceder à Vale o titulo de pior corporação do mundo é muito mais que vencer um premio. É a chance de expor aos olhos do planeta seus sofrimentos, e trazer centenas de novos atores e forças para a luta pelos seus direitos e contra os desmandos cometidos pela empresa”.
Em um hotsite criado especialmente para divulgar a candidatura da Vale foram listados alguns dos principais problemas de empreendimentos da empresa no Brasil e no exterior. Já sabendo disso, a empresa criou seu próprio site com o objetivo de contestar cada um desses itens. A relação das acusações (em negrito) e do sumário das respostas (em itálico) constitui uma agenda do contencioso da empresa, segundo a visão dos seus críticos, que merece servir de guia:

Compra recente de grande parte do Complexo da Usina Hidrelética de Belo Monte
A aquisição pela Vale de participação no projeto de Belo Monte (9%) é consistente com a estratégia de crescimento da empresa, garantindo o suprimento de parte de suas necessidades futuras no Brasil

Abuso repetido dos direitos humanos e condições de trabalho desumanas
A Vale respeita e promove os direitos humanos em todas as suas atividades dentro de sua esfera de influência

Deslocamento forçado de pessoas em Moçambique
Todas as famílias envolvidas participaram totalmente do processo de reassentamento

Danos ambientais para os povos indígenas da Nova Caledônia
A Vale e as comunidades locais na Nova Caledônia assinaram um pacto de desenvolvimento sustentável para a região sul

Graves problemas de saúde entre as comunidades vizinhas à UPR de Monte Líbano
A acusação foi provada sem fundamento, após pesquisa detalhada realizada pela AVAM nos arredores da UPR Monte Líbano

Problemas com a legislação ambiental relacionados com o projeto S11D
O S11D [para duplicar a produção de minério de ferro de Carajás] está de acordo com o procedimento legal padrão para a obtenção da sua licença ambiental

Greves de longa duração no Canadá e enfraquecimento sindical na Colômbia
A Vale tem o maior respeito pelos sindicatos trabalhistas e acredita na resolução pacífica das questões

A responsabilidade por 4% do total das emissões de CO2 do Brasil
A Vale não é responsável por 4% das emissões totais de CO2 do Brasil e é, neste momento, a única empresa latino-americana no Índice de Liderança em Divulgação de Emissão de Carbono (CDLI)

O despejo de 114 milhões de metros cúbicos de efluentes em rios e oceanos
A Vale cumpre rigorosamente a legislação ambiental em relação ao tratamento e descarte de efluentes

Está enfrentando 111 processos legais e 151 investigações criminais
A Vale é transparente em relação aos seus processos legais e os relata em seu Relatório Anual de Sustentabilidade

Com essas respostas, a empresa pode achar que desfaz os argumentos dos que a combatem, mas sua iniciativa não é suficiente para mudar sua imagem negativa. Ficou claro que ela só foi a vencedora nessa sondagem internacional por causa dos votos dos brasileiros. Pode-se alegar que o universo eleitoral foi muito pequeno, não era representativo e sofreu de um mal de origem, com a tendenciosidade da maioria dos votantes.
No entanto, eles representaram de fato a posição que parte da opinião púbica assumiu em relação à Vale. Pelos mesmos motivos ou por outros, sob a mesma linha de raciocínio ou segundo outros tipos de abordagens, eles consideram negativo o balanço dos prós e contras da Vale.
É impossível não entender a situação polêmica, e às vezes incômoda da empresa, a contrastar com seu enorme sucesso financeiro, sem voltar à privatização da Vale, feita pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em abril de 1997. Nem é preciso tratar do baixíssimo valor de venda do controle acionário da maior produtora de minério de ferro do mundo, por 3,3 bilhões de dólares.
Esse valor continua a ser (e se torna cada vez mais, na medida do maior esclarecimento) um escândalo. Mas há uma consequência que só fez crescer desde então: o papel do Estado na maior e mais valiosa das empresas que foram privatizadas no Brasil.
De forma direta ou indireta, o governo federal detém mais de 60% do capital votante da Vale. É quase o dobro das ações que possui na Petrobrás (32%). Não se fala da privatização da estatal do petróleo, como se outros acionistas que se reunissem tivessem mais peso do que Brasília.
No caso da Vale, o poder público ainda ficou com um tipo de ação especial, a golden share, que lhe permite corrigir os rumos da companhia se ela se desviar dos termos do edital de leilão e da sua configuração de então, que era estatal. Como o governo não usou o seu poder de controlador para impedir que a Vale caminhasse numa direção contrária ao desejo do seu principal dono?
Lula esbravejou com Roger Agnelli, o presidente que mais durou no comando da companhia, por 10 dos seus (agora) 70 anos. A rusga começou em 2008, levando à demissão de Agnelli quase três anos depois. Por que tanto tempo e celeuma se o governo podia ser mais eficiente sem precisar ser boquirroto, agindo?
A divergência de fundo entre os dois se baseava na demissão de 1.800 funcionários da Vale durante a primeira crise financeira internacional deste século e na exigência do presidente da república para que a Vale também atuasse na siderurgia e não apenas na mineração, conforme Lula achava ser a estratégia de Agnelli.
O executivo, originário do Bradesco, maior sócio privado, caiu, e Murilo Ferreira assumiu. Tudo aparentemente mudou e tudo, em substância, permaneceu o mesmo. Na verdade, ou a empresa está fazendo o que, no íntimo, o governo quer, ou então o governo não sabe, de fato, fazer diferente, dar efeito concreto à sua retórica de mudança. Talvez porque a Vale se tenha tornado grande demais para a própria envergadura do Estado nacional brasileiro.
A Vale é a maior empresa privada da América Latina. É a segunda mineradora do mundo, atrás apenas da BHP/Billiton. Tem 500 mil acionistas espalhados pelos cinco continentes, nos quais atua, em 38 países, com 126 mil funcionários. É responsável por metade das exportações brasileiras com o produto que está no topo do ranking, o minério de ferro.
No ano passado bateu o recorde histórico de produção: 308 milhões de toneladas. Entre 65% e 70% desse minério vai para a Ásia, em especial para a China (80% do mercado asiático), o país que mais se expande no mundo. Proporciona 10% do saldo líquido de divisas do Brasil, que nunca faturou tanto.
O balanço da empresa, prometido para divulgação no próximo dia 15, deverá registrar um lucro líquido recorde, de 30,1 bilhões de reais, dos quais 6 bilhões de dólares (ou R$ 11 bilhões) serão distribuídos como dividendos aos acionistas, 50% a mais do que em 2010, algo sem equiparação no mercado brasileiro. Em 2010 a Vale ultrapassou momentaneamente a Petrobrás. Seu valor de mercado passava de 300 bilhões de reais.
Neste ano pretende investir US$ 21,4 bilhões, 69% no Brasil. Sua capacidade de investimento é bem superior à do governo brasileiro, que, para fazer obras num ano eleitoral, promete que fazer o que menos gosta: cortar seus gastos de custeio.
A modelagem do leilão, feita pelo Bradesco, visou privatizar a Vale sem tirar-lhe a estrutura de estatal. A busca pelo crescimento acelerado e o lucro multiplicado incrementou essa estrutura de governo, dando à nova Vale uma fisionomia bifronte: ora de empresa privada, ora de governo.
Por isso, é mais do que uma multinacional. Que multinacional opera oito portos, sendo que dois deles (Ponta da Madeira, em São Luiz do Maranhão, e Tubarão, em Vitória do Espírito Santo) estão entre os maiores do mundo? E que multinacional ainda ganharia mais concessões para interligar entre si essas duas vias expressas de exportação, uma delas (Carajás) com o maior trem de cargas do mundo? Que multinacional manteria sob seu controle monopolístico 9 mil quilômetros de linhas férreas? E teria direitos minerários sobre 280 mil quilômetros quadrados em um único país?
É coisa demais para caber na agenda de uma empresa privada, por mais poderosa que ela seja. A Vale tinha, até ser privatizada, outra glória: a maior frota de navios graneleiros do mundo. Toda essa frota foi alienada na gestão Agnelli, sem qualquer reação por parte da opinião pública e do governo.
Quando o faturamento do frete, sobretudo para China, adquiriu tamanho lucrativo fascinante, o percurso foi invertido: de uma só vez Agneli encomendou a estaleiros da China e da Coreia do Sul 18 dos maiores navios de transporte de minérios de todos os oceanos, cada um deles com capacidade para 400 mil toneladas. Na divisão, a Coréia recebeu sete navios e US$ 748 milhões, enquanto à China foram pedidos 12 navios, ao custo de US$ 1,6 bilhão.
No dia 19 do mês passado o primeiro desses gigantes, o Vale Rio de Janeiro, completou a primeira viagem completa do novo ciclo e chegou ao mais movimentado porto do mundo, o de Rotterdam, na Holanda. Foi recebido com admiração e espanto mesmo por olhos acostumados a esses mastodontes flutuantes. Só não chegou com a carga completa por causa do lastro: para entrar no canal do porto teve que deixar no Brasil 14 mil toneladas. Viajou com 386 mil. Ainda assim, a maior carga de minério de todos os tempos a circular pelos mares.
Mas onde pode aportar esse monstro de aço carregado de sua matéria prima? Mesmo com a encomenda de parte dessa frota, que deverá ser concluída no próximo ano, a China está criando problemas para receber os cargueiros da Vale nos seus portos. Não é problema insolúvel, claro.
Nada que um acerto de preços e uma composição de fretes não resolvam. Mas é problema surgido depois da decisão de reconstituir a frota, que foi vendida a preço de sucata, quando a Docenave estava em plenas condições de continuar a transportar o minério, como vinha fazendo com êxito até então.
Há outro problema. O primeiro dos cargueiros trazidos da Coréia do Sul (mas foi batizada como Vale Beijing, em homenagem à capital do país que é o maior cliente de todos), em sua operação inaugural, rachou ao embarcar minério no porto de São Luís. Por pouco não foi a pique na baía de São Marcos, uma ameaça ecológica, ambiental e econômica.
Agora sua carga está sendo retirada com cuidado, depois do esgotamento do combustível, para que ele volte ao ponto de origem e se restabeleça. E os outros? E qual o montante do prejuízo que a empresa e o país sofreram pela decisão de acabar com a frota da Docenave e, só anos depois, reconstruí-la em estaleiros estrangeiros?
Esta não é apenas uma questão de defender os estaleiros nacionais, já que um navio com bandeira brasileira também se deu mal na primeira viagem. É uma questão de maior transcendência: o Brasil está se beneficiando o quanto seria possível da exploração das suas riquezas pela Vale? Devia mesmo estar exportando tanto? Os acionistas estão à frente de todos na colheita dos resultados, tirando para si o que devia ser mais bem distribuído, inclusive aos que participam diretamente do processo produtivo?
Se o título negativo concedido à Vale, mesmo que à custa de argumentos inconsistentes, tiver o efeito de chamar a atenção da sociedade brasileira para uma história que se desenrola aos seus olhos sem atrair a sua participação, terá valido a pena a votação.

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