A cabeça de Jader(Por Lúcio Flávio Pinto)

Parecia que a volta de Jader Barbalho ao Senado, depois que o STF negou vigência à lei da ficha limpa na eleição do ano passado, era apenas uma questão de formalidade. Mais cedo ou mais tarde seu direito teria que ser reconhecido. Agora há uma dúvida: será mesmo?

Parcela considerável – talvez majoritária – da sociedade brasileira quer Jader Fontenele Barbalho fora da política. Seu nome foi estigmatizado nacionalmente. Virou sinônimo de enriquecimento ilícito, à base do desvio de dinheiro público. Não há explicação aceitável, com base no cálculo matemático ou no critério do bom senso, para o patrimônio que acumulou em 45 anos de carreira política, sua única fonte de renda em todo esse período.
Falta até mesmo verossimilhança entre o que o ex-governador possui e o que seu rendimento autorizaria possuir de forma legal e honesta. Talvez por isso Jader se mantenha calado, indiferente à saraivada de acusações que lhe são desferidas. Tornou-se o anti-teflon: tudo o que toca nele, cola, gruda. Ainda que não seja munição real.
Por isso mesmo, Jader acaba por servir de boi de piranha. Uma vez desviadas atenções e fúrias em sua direção, alvo fácil e evidente, outras fortunas geradas ilicitamente na vida pública (e, em especial, na atividade política) ficam protegidas da curiosidade geral. E várias delas têm dimensões bem superiores às do político paraense.
Fazer de Jader Barbalho o inimigo público nº 1 da política no Brasil tem ainda outro aditivo: ele é do Norte. E os nortistas são apontados como modelos dos maus costumes civis nas praças da modernidade do país. Como se São Paulo não tivesse tido Ademar de Barros e não tem ainda Paulo Salim Maluf, encarnações do que há de pior na política, sem nunca terem deixado de ser muito bem votados no seu torrão natal.
A proporção do que Ademar amealhou comparativamente ao desempenho de Jader pode ser medida pelo assalto ao cofre da sua amante, Ana Benchimol Capriglione (por ele tratada sob o título de “doutor Rui”), que rendeu ao grupo de esquerda armada ao qual a atual presidente da república pertencia, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a bagatela de 2,5 milhões de dólares. Em valor histórico, não atualizado.
Quando determinada pessoa chega à condição de estigma, o que menos importa é a correspondência entre os fatos e os mitos, a realidade e a fantasia. Muitos dos que apontam o dedo em riste para condenar o líder do PMDB não saberiam fundamentar sua sentença em fatos. Quando muito, repetem o que certa imprensa dá como verdadeiro e provado.
Os três exemplos mais citados como prova da corrupção de Jader são os depósitos de recursos do Banco do Estado do Pará através de cheques administrativos ao portador, o ranário de sua ex-mulher, que recebeu recursos dos incentivos fiscais da Sudam, e a participação de Jader nesses mesmos recursos dos incentivos fiscais amazônicos.
Sobre o ranário, que já era de propriedade de Márcia Centeno antes que ela se tornasse esposa do ex-deputado federal, as provas juntadas não se sustentaram. O projeto foi considerado implantado.
Há fortes evidências de que, no primeiro e no último caso, ele tenha tirado proveito dessas operações com dinheiro público, sobretudo através do desvio de aplicações do Banpará. Mas nem o fiscal do Banco Central, Abrahão Patruni Júnior, no seu muito citado – e raramente lido – relatório de 1990 estabeleceu conexão direta entre a saída do dinheiro e seu depósito em conta de Jader, mesmo concluindo pelo benefício ao político paraense.
O dinheiro, na verdade, entrava num fundo de investimento com 300 aplicadores aproximadamente, um dos quais era o então governador do Estado, no seu primeiro mandato, e pessoas a ele ligadas. O técnico identificou o rastro do dinheiro até o ingresso no fundo, mas não conseguiu rastreá-lo até o beneficiário.
Eu próprio tive evidências da relação através de um gerente da agência do Itaú no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Ele confidenciou a um amigo, que então trabalhava na TV Globo, no mesmo bairro, que o governador fora à agência tratar das aplicações, acompanhado pelo médico Henry Kayath. O ex-político “baratista” viria a ser nomeado superintendente da Sudam, por influência de Jader. Noticiei o fato na época, 1984.
Da mesma forma, há fortes evidências de que beneficiários dos incentivos fiscais durante a gestão de Arthur Tourinho na Sudam tenham brindado o padrinho da autoridade responsável pela liberação, através de um “laranja”. Mas também nesse caso a conexão ainda não foi estabelecida de forma satisfatória.
Os adversários de Jader Barbalho parecem considerar essa insuficiência como aspecto meramente formal, que cumpre ignorar para fazer justiça e punir quem realmente se aproveitou ilicitamente das funções públicas que exerceu. Do ponto de vista ético e moral, a posição é aceitável e até louvável. Mas não do ponto de vista legal.
Se Jader, utilizando bons (e caros) advogados (um deles ex-juiz federal e outro ex-ministro do TSE), além das lacunas e falhas da legislação, evita a prova da verdade ou protela o andamento dos processos até a sua prescrição, cabe ao agente da lei e ao poder público em geral valer-se do aparato ao seu dispor para imobilizar esses artifícios e fazer prevalecer o objetivo punitivo da norma. Jader, se depois de preso e algemado deixou de ser um cidadão acima de qualquer suspeita, sem tratamento especial, não pode, no entanto, ser tratado como sub-cidadão.
Em situações semelhantes, costuma-se estabelecer paralelo com a ação do FBI (a polícia federal americana) para levar o gangster Al Capone para a cadeia. Não pelos numerosos e diversificados crimes que ele cometeu, evidentes, mas sem provas quanto à sua autoria: Capone foi preso por sonegar imposto de renda, o que foi fartamente documentado. É o típico crime de “colarinho branco”, agora considerado hediondo entre nós, por privar a coletividade de recursos que serviriam para o bem de todos.
A nova legislação penal brasileira está indo na direção certa quanto aos crimes financeiros: o autor pode até responder em liberdade, mas só se pagar uma fiança pesada, proporcional ao valor do rombo que tiver causado. No valor de 120 milhões de reais, por exemplo. Uma sangria dessas abalaria o padrão desse tipo de criminoso. Certamente Jader Barbalho se enquadra no tipo penal. Mas os irmãos Romulo e Ronaldo Maiorana também. O crime que eles cometeram foi de “colarinho branco”.
Assim a ordem legal não seria arranhada e os princípios éticos e morais, preservados. Ao contrário do que está acontecendo, por efeito da politização da justiça, de cima abaixo, desde o Supremo Tribunal Federal até o juiz singular. No caso de Jader, o STF decidiu, em outubro, que a lei da ficha limpa já vigorara na eleição de 2010. Decidiu, modus in rebus, como gostam de dizer os advogados. Sem seu 11º integrante, a corte suprema da justiça brasileira chegou a num empate em cinco votos e desempatou por uma extensão de norma regimental, procedimento que se poderia considerar, no máximo, privativo da passional justiça desportiva.
Cinco meses depois, pelo voto do ministro que estava ausente (por ainda não ter sido nomeado), o STF voltou atrás e declarou que a lei da ficha limpa só começará a valer em 2012. Como o único caso julgado antes dessa mudança de entendimento era o de Jader, punido com a perda do seu registro de candidato a senador, a sentença teria que ser reapreciada. Essa revisão não poderia ser feita pela via regular porque os dias passavam e o acórdão da segunda decisão da corte não era publicado, o que só ocorreu em junho, três meses depois da sessão.
Como o novo entendimento era “de repercussão geral”, os advogados do ex-quase-quem-sabe-futuro senador requereram ao relator que, exercendo o juízo da retratação, desse cumprimento à decisão majoritária do colegiado. O ministro Joaquim Barbosa, anti-Jader de carteirinha, negou o pedido. Alegou que decisão da corte, só a corte revê. E pediu mais uma das suas intermináveis licenças médicas. Um novo requerimento não pôde ir ao julgador prevento. Redistribuído, foi para o ministro Ricardo Lewandowski, um dos que votou pela cassação do registro de Jader e a vigência imediata da lei da ficha limpa. Seu posicionamento foi similar ao de Joaquim Barbosa.
Assim, Jader Barbalho já perdeu um semestre de mandato, se o mandato lhe for reconhecido. O registro da sua candidatura, deferida pelo tribunal eleitoral sub-judice, foi votada por quase 1,8 milhão de eleitores, dando-lhe o segundo lugar na disputa (embora com votos contados em separado). É uma votação de grande expressão, considerando-se a circunstância de que sua cassação era apontada como certa, o que levaria o eleitor a perder o seu precioso voto.
Essa votação, porém, não seria suficiente para garantir-lhe a posse, condicionada à apreciação judicial. Mas a decisão do STF foi uma evidente violação até de princípios constitucionais e do direito universal. Quando Luiz Fux tomou posse e desempatou contra a lei da ficha limpa, sua posição foi logo interpretada como política pelos que queriam o expurgo de Jader da vida pública.
O empate já tivera o ranço do entendimento de bastidores, à margem do texto da lei. Logo, tanto para os que estão ao lado do ex-governador como para os que o combatem, a partir de agora são remotas as possibilidades de que a vitória que vierem a obter pareça limpa e honesta. O processo todo foi contaminado pelo jogo de poder, exercido nos bastidores. É uma péssima moral para o enredo da cidadania.
A atenção da maioria dos que acompanham essa história parece ter-se desviado do texto para a sua marginalia, que está tão à margem que se tornou invisível. Se o voto favorável de Fux resultou de entendimento político, as dificuldades criadas depois, impedindo que Jader assuma a cadeira que a votação popular colocou à sua disposição, igualmente são produto de uma má vontade política? A corrente que quer acertar as contas com Jader, pelo que é e pelo que representa, está preponderando sobre a facção que precisa dos seus serviços no parlamento federal (e no Pará, obviamente)?
É muito difícil dar uma resposta honesta a essa questão sem um amplo domínio de informações de múltiplas fontes. Mesmo em posição desgastada, Jader Barbalho continua a ter um terço do eleitorado paraense e a ser um político excepcionalmente habilidoso. Mas seus antagonistas também são poderosos. Sinal disso é que, depois de tentar ser profissional nos episódios anteriores, o Diário do Pará noticiando tudo, mesmo com ressalvas, nada disse sobre a decisão do ministro Lewandowski, enquanto O Liberal deu sua manchete de capa ao assunto.
A gangorra mudou de posição?

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