Ficha não caiu(Por Lúcio Flávio Pinto) - Apesar das críticas feitas à decisão do STF, que transferiu a vigência da lei da ficha limpa, o Brasil deu mais um passo para se livrar dos maus pretendentes a cargos elegíveis. O que falta agora é não deixar que eles fiquem impunes. Para isso, a justiça precisa funcionar.

Na sua já obsessiva – e pouco produtiva – campanha contra Jader Barbalho, O Liberal abriu manchete na capa da sua edição do dia 26 com uma provocação: “Lei da Ficha Limpa é potoca?”. Debaixo de um subtítulo (“Além de não punir os fichas sujas, dificilmente valerá para as eleições de 2012”), o texto explicava: “Ex-governador Magalhães Barata dizia que lei é potoca. A Lei da Ficha Limpa caminha nessa direção, pois já se admite que ela dificilmente deverá valer para as eleições de 2012. Os debates e julgamento de recursos poderão levar até dez anos, uma vez que a Constituição assegura ‘que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’”.
O simples resumo é suficiente apenas para introduzir o leitor em matérias extremamente complexas do mundo do direito e da justiça. Elas não cabem, porém, na simplicidade arbitrária da frase, nem a figura do caudilho é boa inspiração para abordar a questão. Barata não chegou à conclusão de que lei é potoca depois de se desiludir por tentar aplicá-la: ele partia dessa presunção. Com seu espírito autoritário, voluntarioso e refratário às críticas, o líder do PSD (Partido Social Democrático) se recusava a se submeter às leis, quando elas contrariavam seus interesses (e, sobretudo, os apetites dos seus amigos e protegidos, cuja influência maléfica ultrapassava as limitações do chefe).
O Liberal, como se sabe muito bem, era dos poucos bens patrimoniais de Barata, que o recebeu por doação de amigos cotizados para comprar o jornal. Duas décadas depois de fundado, como órgão oficial do “baratismo” e arauto do caudilho, o jornal foi adquirido por Romulo Maiorana, casado com uma sobrinha do homem que foi o mais poderoso do Pará durante três décadas. Poder que se projetou sobre um vasto universo de personagens, desse rol fazendo parte o próprio RM. Chegado a Belém em 1953, Romulo ainda se beneficiou do último – e mais intenso – governo de Barata (entre 1956 e 1959, quando morreu de câncer antes do final do seu mandato).
A lei da ficha limpa está bem longe de poder se enquadrar na patacoada “baratista”. Uma centena e meia de políticos deixaram de disputar as eleições do ano passado por causa dela. Não é um número inexpressivo. Ela entrará em vigor em 2012, qualquer que venha a ser o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal a respeito dela. O que poderá acontecer é que sua vigência continue a ser parcial ou bastante limitada. Mas ela não foi – e é pouco provável que venha a ser – revogada. É uma conquista consolidada do povo brasileiro.
Numa visão primária, como a que teve O Liberal, por sua filiação originária a uma das vertentes viciosas dos hábitos públicos no Pará, a lei foi desvirtuada pelos julgadores, que não aceitaram reconhecer sua aplicação já em 2010. O acerto espúrio teria culminado com o voto do mais novo ministro do STF, que desempatou em 6 a 5, pondo fim a um impasse de quase seis meses. Com isso, reabrindo as portas para figuras já proscritas da vida pública pelo crivo moral da lei, como Jader Barbalho. Mais um acerto da politicalha brasileira, mancomunada com magistrados que traem seu dever de ofício?
Não é assim, contudo. Numa sociedade amadurecida, acusações tão graves como essa precisam ser provadas. É para isso que existe a imprensa, mais qualificada para tal missão do que qualquer outra instituição do aparato formal do poder público. O acusador precisava reunir provas ou fortes evidências desse entendimento de bastidores. Há algum precedente em favor da ideia de um conchavo entre os representantes do executivo, do legislativo e do judiciário para manter a sobrevida de políticos de maus currículos (ou movimentados prontuários), que renovam seus mandatos eletivos a despeito de uma crescente rejeição e condenação – moral, ética e, agora, também legal – por parte da sociedade.
Os ministros do STF têm contribuído para a desconfiança da opinião pública. Durante as sessões (e mesmo em outros cenários) costumam deixar de lado a exegese jurídica para trocar ataques, medir vaidades, alfinetar adversários ou exibir um conhecimento pedante, além de aceitar ingerências paralelas à apreciação técnica das demandas.
Os chefes do poder executivo, donos da chave do cofre e da caneta que nomeia e demite, ao invés de selecionar candidatos à mais alta magistratura conforme os critérios estabelecidos para a escolha dos mais capazes, preferem fazer o jogo dos interesses pessoais e corporativos. O resultado é a perda de qualidade e de respeitabilidade do STF e das demais cortes de justiça do país.
Ainda assim, reduzir a decisão do Supremo a mero ardil é ignorar o conteúdo dos debates que foram travados em torno da lei da ficha limpa. O voto do ministro Luiz Fux pode não ter sido o melhor (nem o mais longo, na ginkana de verborragia que se tornou comum na corte suprema do país), mas foi o mais claro e sólido. Ele defendeu um princípio constitucional (e, em última instância, da própria razão de ser do direito): a segurança jurídica.
Nenhuma nação séria aceitaria que uma lei, votada num determinado ano para modificar o processo eleitoral, entrasse imediatamente em vigor. Ainda mais como acontece no Brasil, com o texto constitucional claramente exigente do prazo de um ano entre a aprovação e a vigência. Além de retroagir, a lei se voltava contra o réu, que conta com a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Ou seja, quando a lei processual for exaurida de todos os seus recursos.
Este é o ponto vital de todo o debate sobre a lei. É secundária a querela sobre se a exigência de ficha limpa a partir de 2010 equivale a uma pena ou é apenas uma sanção, um requisito do princípio da moralidade pública, que também é constitucional, incompatível com a nódoa criminal de pretendentes à função pública. Ou detalhes ainda menores, como o de que a lei é válida, mesmo sem atender ao critério da anualidade, por ter sido aprovada depois das convenções partidárias para a escolha dos candidatos, não podendo, dessa forma, alterar mais as condições de igualdade dos concorrentes.
O que motivou a proposição e aprovação da exigência de passado ilibado para quem quer ser candidato a cargo eletivo é a constatação de que políticos voltam a se apresentar em cada eleição mesmo acumulando processos cíveis e penais. A quantidade de demandas não lhes tira a primariedade porque as ações propostas contra eles não chegam ao fim. O trânsito em julgado das ações é uma raridade na justiça brasileira. Ainda mais para os que têm dinheiro suficiente para contratar bons advogados e transformar a prescrição num instrumento da presunção de inocência, ainda que tenham sido condenados em instâncias iniciais.
A lei da ficha limpa não teria enfrentado óbices diversos, alguns deles só transponíveis à custa da violação de claras determinações constitucionais, se a instrução processual tivesse duração razoável, permitindo ao cidadão acreditar que não será preciso remeter suas dores para a justiça divina, à falta do amparo secular. Modificações nas regras processuais e maior controle externo melhoraram a situação, mas ela está muito longe de se equiparar à dos países de civilização consolidada e democracia amadurecida. A legislação está bem melhor do que a adotada poucos anos atrás, mas o aprimoramento dos juízes não acompanhou essa evolução. O espírito de corpo ainda é muito forte e a resistência à prestação de contas torna o poder judiciário o menos eficiente e menos democrático de todos.
É preciso fortalecer e não minar as bases do Conselho Nacional de Justiça, uma das melhores criações introduzidas no aparelho judicial. Mas é preciso também colocar todos os holofotes sobre o CNJ, sobre os seus mecanismos e os que o utilizam. Um conselheiro do CNJ tem que ser como a mulher de César, a quem não bastava ser honesta; era necessário também que parecesse honesta.
Um conselheiro não pode impor o seu cargo quando demanda em juízo na condição de cidadão comum, conseguindo tramitação tão rápida e decisão tão amoldada à sua vontade, como a que o desembargador Milton Nobre arrancou de uma juíza substituta na empreitada contra a jornalista Ana Célia Pinheiro (ver matéria adiante). Assim, um magistrado passa a ser um cidadão “mais igual” do que os outros e esta é uma moral de inspiração tão ruim quanto a potoca de O Liberal.
O que esses (ainda) condutores da vontade coletiva não vêem é que o cabresto já não funciona como antes. O jornal da família Maiorana passou três meses atacando Jader Barbalho quase todos os dias, nos editoriais e na sua principal coluna, o Repórter 70. O tom das catilinárias era tão monocórdio e inconvicente que é bem provável que levou a um efeito contrário ao pretendido, transformando o ex-governador em vítima e não em vilão, contra todas as evidências em contrário.
Hoje, a complexa sociedade brasileira cobra a autoridade moral daquele que reivindica para si o papel de Catão, de juiz de tudo e de todos. Como é que O Liberal pode condenar Jader Barbalho por malversação de dinheiro da Sudam para enriquecimento pessoal ilícito se os irmãos Maiorana recorreram a fraudes – e bem grosseiras – para ter acesso aos mesmos recursos públicos? Por que, quando acusados concretamente, com informações detalhadas, adotam a mesma posição do seu inimigo, que também não se defende, investindo na estratégia de deixar que os fatos se apaguem na efêmera memória coletiva?
Os vilões brasileiros têm esse terrível trunfo nas suas mãos: as histórias nas quais se envolvem (ou são envolvidos) demoram tanto a se definir que acaba passando a atenção do público e o momento da punição. Ainda que tenham no currículo muitas capitulações do Código Penal, continuarão inimputáveis pela raridade da ocorrência do trânsito em julgado da sentença condenatória, quando sentença há – e condenação ela traz consigo.
Não são as virtudes da democracia, mas as suas falhas, que podem permitir a volta de Jader Barbalho ao Senado, de onde saiu às pressas, pela porta do fundo, para não ser punido e perder o caminho de retorno, legal ainda que ilegítimo. A irritação do cidadão é em relação a esse círculo vicioso, que mantém esse tipo de homem público no circuito da representação popular – e, por isso, com muito poder nas mãos.
Cancelada a vigência imediata da lei da ficha limpa, Jader Barbalho pôde dizer que será novamente senador “porque o Pará me escolheu e nos piores momentos abriu caminho para que eu seguisse em frente com a cabeça erguida, sem deixar que a dor me abatesse ou que a calúnia me impedisse de prosseguir na luta”. De fato, o Pará ainda o elegeu senador. Não, entretanto, como o mais votado. E provavelmente não o elegerá mais se as ações a que ele responde na justiça tiverem tramitação ao menos razoável, sem a possibilidade de recursos meramente protelatórios por advogados caros, capazes de tirar o vigor da lei, a ponto de transformá-la em potoca, ou motivo de troça para patacoadas que agridem a verdade histórica e os princípios morais e éticos.
Com mais e melhor democracia, os vilões serão punidos e os falsos Catões, desmascarados. É assim que a lei da ficha limpa se consolidará.

Reply · Report Post