Benedito Nunes,o leitor precioso (Por Lúcio Flávio Pinto) - Eu próprio me surpreendi – e me emocionei muito – quando recebi a longa resposta que Benedito Nunes me mandou em resposta ao questionário que lhe submeti, em 1991. Parecia que ele esperava por uma simples provocação, como a que lhe fiz, para abrir seu coração, sua alma e sua cabeça numa confissão e numa rememoração sobre sua fecunda relação com os livros.
Uma relação que começou quando ele ainda era menino de calças curtas. O livro preencheu a ausência dos pais, que morreram muito cedo. A ligação com sua família desaparecida foi através dos livros da biblioteca do pai. Benedito não só aprendeu com eles. Os livros se tornaram parte da sua vida, um elemento orgânico, um componente natural do seu ser, companhia plena.
Benedito leu como poucos. Como raros, dialogou com o conhecimento contido nos livros que leu, assimilados como elemento vivo e permanente da sua personalidade. Só assim se justificava saber tanto, lembrar tanto, fazer referências exatas, profundas e numerosas sem parecer um rançoso erudito. Quando falava sobre o conhecimento, seus olhos ficavam ainda menores, mas brilhavam intensamente, faiscavam de prazer.
Era a expressão da sua curiosidade sempre insatisfeita e do dom sublime que ele tinha, de querer partilhar o que sabia, estimular aptidões, cultivar talentos, desenvolver qualidades – sempre nos outros, mais do que nele mesmo, que era auto-suficiente (e por isso foi sempre autodidata).
Uma simples conversa com Benedito já marcava e transformava. Quando o interlocutor exibia dotes de criador, ele se realizava na tarefa de tornar conscientes esses dons, ajudando o criador a manejar melhor suas próprias virtudes. Era assim que Benedito exercia a condição de professor, de mestre. E também de co-autor. Em quantos textos assinados por outros havia o seu toque mágico, ao mesmo tempo exato e simples, coadjuvante de uns, recriador de outros. Um verdadeiro homo faber poundiano.
Um sábio, disse-o a certo intelectual muito próximo de Benedito, que não concordou com a minha classificação. Eu exagerava, protestou, embora admirasse Benedito. A expressão costuma ser usada sem critério, à toa. Mas não é excessiva no caso de Benedito.
Sua maior sabedoria, a de um verdadeiro sábio, ainda que conforme um modelo já fora de moda, no nosso mundo de especializações e segmentações, estava em colocar seus interlocutores diante de referenciais rigorosos e bem definidos, nos quais eles podiam se espelhar, mas numa versão melhorada pelo aprimoramento, pela crítica que amolda através do exercício da escultura intelectual, ora agregando valores ora excluindo-os.
Sem ser um verdadeiro artista (seu rigor logo lhe vedou o acesso à poesia, que praticou muito rapidamente – e sem qualquer perícia), formou artistas, sobretudo poetas, o que, no fundo, era o que Bené foi por outras vias, embora desejasse realizar essa vocação em versos.
Em alguns dos seus livros, é perceptível essa capacidade de manejar a sonoridade das palavras, sem prejuízo – muito pelo contrário – do seu significado rigoroso, mas também sem os vincos da cientificidade, do formalismo acadêmico. Ao vagar no puro pensamento ou referido a alguma fonte, ele levava ao extremo o prazer de pensar, de especular, de indagar.
O que o distinguia da maioria dos filósofos era que, sendo essencialmente um pensador, Benedito se espalhava pela literatura, a estética, a história e as coisas triviais da vida. O brilho de curiosidade e atenção nos seus olhos não mirava apenas as ciências: tinha um foco sensível sobre todas as coisas humanas, incluindo as de domínio popular, como a música ou a televisão.
Sem excluir os faits-divers que alimentam a boa fofoca, os divertidos detalhes e divertissements. O mundanismo feito por pessoas de carne e osso, como ele. A história das estruturas de par com misérias e grandezas humanas, como as que um Simon Schama captou no dia a dia da gloriosa (e feroz) revolução francesa. Partilhar uma refeição com Benedito era experimentar a elevação de uma ceia da carne e do espírito. Como se comia! E como se falava! Nada mais platônico e socrático. A torre de livros se harmonizava com os jardins da rua da Estrela.
Nos últimos anos poucas vezes fui até lá. As misérias do subdesenvolvimento e da condição colonial da nossa terra me mantiveram atado aos caprichos e malignidades de medíocres potentados paroquiais. Meu mundo passou a ser de engrenagens jurídicas, que, se me amarguram a vida, me fazem buscar sua superação naqueles que inspiram o mais-além, como Franz Kafka, um pé na tragédia e outro na comicidade. Sem o humor, como resistir se há-de (às batatas o léxico da Academia Brasílica-Portucalense)?
Meu primeiro contato pessoal com Benedito foi em 1972: uma entrevista sobre o cinquentenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo. Precedida por uma provocação a que ele não respondeu. Usando como plataforma conversa gravada com o arquiteto Paulo Chaves Fernandes para o suplemento Bandeira 3, de A Província do Pará, questionei o filósofo que não se envolve com o seu tempo local, sua terra. Clamava por uma manifestação de Benedito sobre os insensatos “projetos de impacto” do governo militar na Amazônia.
O filósofo se manifestou pouco sobre esses temas. Jovem impetuoso, eu tentava uma comparação de pé quebrado com Heidegger e o nazismo. Benedito não era Heidegger e a ditadura militar não chegou ao totalitarismo hitlerista. Havia uma fumaça de paralelos, mas nosso Bené não estava isolado em sua torre de papéis impressos nem coonestava as violações aos direitos do cidadão.
Sua repulsa era modulada pelo seu jeito de ser e pelas exigências do seu ofício e mister daquele entre nosostros que foi mais além do que todos os demais. O resto foi uma pedra no meio do caminho. Nela tropeçamos nós, os seres de vôo mais rasteiro, como jornalistas em luta com suas circunstâncias rasteiras e mesquinhas da dominação exercida por lideranças nefastas, pigmeus num tempo a clamar por gigantes.
Quando Hélio Gueiros, três meses depois de ter deixado o governo do Pará, em 1991, me enviou aquela terrível carta pornográfica, Benedito foi uma das oito pessoas a quem consultei para decidir o que fazer com aquele lixo. Bené leu a primeira e escatológica linha e me devolveu o papelucho com um “me poupa”. Foi um parecer eloqüente, de um verdadeiro pensador. Entendi onde Benedito estava. E em que mundo eu me conduzia.
Ativo, inquieto e insatisfeito, Benedito Nunes criou e produziu até o fim dos seus 82 anos. Foi tão cativante que o tempo lhe concedeu o privilégio de ser reconhecido pelos contemporâneos, receber as homenagens devidas e preparar um sucessor, Victor Sales Pinheiro, que está lhe reeditando a obra com o sopro de uma nova geração, mais exigente e também mais satisfeita com o legado. Benedito avançou o máximo antes de passar o bastão. Sua mente prosseguia a plenos pulmões, como no verso de Maiakovski, quando a doença o mandou para o hospital, tão distante de suas preocupações e rotinas, e daí para a dimensão dos sonhos, da razão, da saudade e da memória cativa.
Decidi reproduzir a entrevista de 20 anos atrás a pedido de Mauro Ó de Almeida. Ele foi um dos felizardos que recebeu a separata da entrevista, publicada originalmente em A Província do Pará. Tive a idéia de sugerir à direção da Universidade Federal do Pará que a publicasse em folheto e o distribuísse aos calouros que estavam chegando e a quem mais estivesse na órbita (Mauro foi um deles, mas emprestou o seu exemplar e nunca mais o recebeu de volta).
Foi o mais brilhante convite a entrar no mundo dos livros e, por eles, ao melhor acervo da criação humana. É um guia das luzes que nos presenteia um dos mais iluminados dentre os brasileiros destes tempos de tons cinza sobre a inteligência. Meu irmão, Elias Pinto, publicou parte da entrevista em sua página dominical no Diário do Pará. A versão integral é reproduzida a seguir, num encarte especial.
Obrigado, Benedito.

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