O fim da fronteira


Em meados de 2015, no meio da empolgação da Microsoft com o lançamento do seu Windows 10, li um surpreendente artigo no Windows Team (notório blog especializado em produtos e serviços da gigante de Redmond) no qual o autor dizia que não queria um Windows Phone nem um Windows Mobile, referindo-se à versão 10 Mobile do novo sistema, própria para smartphones.
http://www.windowsteam.com.br/editorial-nao-eu-nao-quero-o-windows-phone-e-muito-menos-o-mobile/
Em sua visão, divergente da até então adotada pela Microsoft e que Satya Nadella se esforçou para mudar, o editor Marcio Vianna dissertou que queria simplesmente usar o Windows – o “verdadeiro” – em qualquer dispositivo, não importasse qual o formato do aparelho no qual o sistema estivesse instalado. Se era um computador, um tablet, um híbrido ou... um smartphone. Aparelho este que, como sabíamos até então, jamais seria capaz de tal feito, por conta de uma sigla-chave: ARM.
A sigla atualmente usada para Advanced RISC Machine e anteriormente para Acorn RISC Machine, trata de uma arquitetura de processadores que engloba em seu nome outra sigla, para reduced instruction set computing. O que isso, fora uma tradução não tão necessária, significa? Que temos um tipo de processador que usa menos transístores que seus pares mais parrudos, baseados na tecnologia CISC – complex instruction set computing – normalmente empregados em computadores de mesa. Os processadores ARM gastam menos energia, aquecem pouco e tem custo de produção baixo. Os processadores típicos de PC’s são muito mais potentes, beberrões e requerem resfriamento constante.
Não é preciso refletir muito para saber por que a indústria de smartphones (e de quase todos os tablets) optou pela arquitetura ARM. Baixo consumo de energia, pouco aquecimento (salvo casos como o do Snapdragon 810) e preço acessível. O hardware, bastante variado, permitiu a criação de aparelhos portáteis poderosos – ainda que não tanto quanto um computador normal – e caros, mas também de dispositivos baratos, que fazem o básico do básico e, vejam só, acessam a internet e executam programas, ops, aplicativos (perdão por eu ser um velho de mais de 30 anos rsrs).
Várias empresas reinaram em diversos períodos, tendo como cetro os processadores ARM. Na pré-história dos smartphones, tínhamos a Nokia e a BlackBerry liderando o mercado de celulares, tanto em termos de hardware quanto em termos de software, com o resto atrás. Palm e seus pseudo smartphones Palmtops, Motorola, Samsung... e a Microsoft com seu Windows Mobile 6.X. Todas batalhando um lugar ao sol no Grid, produzindo hardware e/ou software. Até o Google pretendia entrar na briga, com um tal de Android, que seria o sistema de um celular com teclado e uma telinha imitando o visual de um notebook aberto, como já faziam as outras empresas.
Aí veio a Apple em 2007 e lançou o iPhone.
O que nos foi apresentando não era apenas um aparelho elegante, com recursos incríveis e inovadores, simples e sua proposta de tela sensível ao toque, que inaugurou a categoria dos smartphones. Era justamente o que todos queriam, mas não conseguiam até então explicar: um aparelho de bolso que pudesse ser usado com as mãos, sem precisar de teclado físico e mouse. Ninguém queria um computador desajeitado e seus periféricos – e era isso que alguns celulares até então eram, imitações toscas de computadores com sistemas capados. Uma fronteira estava então bem definida, separando smartphones e computadores, a despeito das semelhanças que desde então só aumentaram. Já é comum ouvir que todos os smartphones estão iguais. https://www.manualdousuario.net/guia-pratico-111/
E não deixa de ser verdade. Em breve poderemos estender tal sentença à PC’s, especialmente aos híbridos, com telas destacáveis combinam a produtividade de um laptop com a versatilidade de um tablet, e aos phablets, aparelho que aproxima-se conceitualmente de um Palmtop, uma versão diminuta de um computador completo, ultra portátil, embora não tanto quanto um smartphone - uma extensão do computador que permite manter-se conectado em tempo integral, mas atualmente não é capaz de realizar toda a atividade de um computador completo. Aparelhos que se valem da nuvem de alguma forma servem de prévia deste futuro de PC’s ultra portáteis. Chegarei lá.
A Microsoft não enxergava os smartphones como rivais para seu domínio absoluto no desktop. Tanto é que, para competir com o iOS e com o reformulado Android do Google, a Microsoft criou em 2010 um sistema próprio para smartphones, o Windows Phone, com uma linguagem visual totalmente diferente das dos concorrentes, baseada na interface do Zune. O fato é que o então CEO Steve Balmer não possuía visão de programador, e durante sua época a empresa estava diretamente direcionada pela perspectiva ditada pela Apple: sistemas especializados inter-relacionados através de rede. Por mais diferente visualmente que fosse o Windows Phone, ele não passava de uma imitação do que Apple e Google estavam fazendo: SO’s móveis que executavam aplicativos.
Pulando vários capítulos, sabemos que a Microsoft também errou. O Android é uma ameaça real para o Windows completo, e a alternativa à ele é o também rival iOS. E a despeito de muitas tentativas que deixaram uma pequena prole de sistemas operacionais de variados nomes, a Microsoft no máximo atendeu a um nicho de mercado com seu Windows Phone. http://www.windowscentral.com/tech-terminology-check-windows-phone-windows-mobile
Pois Vianna tem razão: o que o usuário de Windows sempre quis em termos de mobilidade era usar o que sempre vinha usando – o sistema completo com os milhões de programas Win32. A alardeada unificação de sistemas que inclui até mesmo o Xbox não mais englobará os smartphone, pelo menos não da forma que a Microsoft vinha tentando fazer, imitando Android e iOS. Nada de tentar invadir e conquistar território “inimigo”, de batalhar pra ganhar participação de mercado e atrair desenvolvedores, de manter um sistema de menos de 4GB incapaz de rodar o Photoshop completo, de competir com serviços do Google. “O Mobile já era” cara. http://www.twitlonger.com/show/n_1spjs5e
Ao invés de involuntariamente apoiar a visão dos rivais de uma fronteira separando smartphones e PC’s, a Microsoft se prepara agora para acabar internamente com essa separação. Sob o comando de Nadella a Microsoft passa a ter a sua visão e interpretação das novas possibilidades da tecnologia de informação. Ela age de modo unificado, propelindo um ambiente de programação que possa ser implementado em qualquer equipamento, desde que sua infraestrutura esteja unificada. A barreira física dos processadores ARM está enfraquecendo rapidamente. Esses equipamentos fundamentais ganharam potência e eficiência, e hoje são capazes de atender às aplicações pesadas das plataformas rivais, mas teoricamente também conseguem dar conta das exigentes demandas do Cobalt, a emulação de programas Win32 na arquitetura própria para processadores móveis. O Windows de core unificado e shell adaptativo equipará uma nova categoria de dispositivos, que a Microsoft chamou informalmente de Cellular PC. Possivelmente, phablets (em termos de dispositivos, algo entre um smartphone e um tablet) nos moldes do HP Elite x3, que sejam capazes de se tornar CPU’s como qualquer outra através do Continuum, como tentam o citado aparelho da HP e outros tantos, incluindo alguns da própria Microsoft.
O fim da fronteira entre PC’s e smartphones parece estar a caminho. Exceto por um misterioso aparelho da HP que não chamou muita atenção e que ficou o tempo todo enclausurado, a ausência de aparelhos com Windows no MWC 2017 evidencia que o território dos smartphones é inóspito para um Windows capado, sem acesso à apps rivais e nem ao próprio ecossistema de programas para Windows desktop. Então será este Windows – o desktop – que a Microsoft escolheu para equipar a próxima geração de aparelhos portáteis capazes de se conectar às redes celulares, não importa se serão cellular PC's, phablets ou tablets. O primeiro deles deverá ser lançado pela própria Microsoft este ano, e possivelmente o citado aparelho que a HP apresentou mas não lançou será também um dispositivo da categoria que pretende reformular a idéia que temos sobre PC's com Windows completo. Até o Dell Stack pode dar as caras https://www.windowsteam.com.br/smartphone-com-processador-intel-nao-era-apenas-um-conceito/
Essa nova categoria de aparelhos pode muito bem ser a reinvenção dos já citados Palmtops. Uma versão atualizada do clássico aparelho profissional, que trata não apenas de uma questão estética mas também de uma exigência técnica. Atualmente, ao projetar-se smartphones as fabricantes guiam-se pelos padrões impostos pelo iPhone – fino e leve, de pouco espaço interno – que exceto pela atual moda de grandes telas, não agrega os desejos do profissional: aparelhos com longa duração de bateria, robustez, durabilidade e versatilidade, qualidades que eu vejo parcialmente presentes no Elite x3. Perceba que são aparelhos fisicamente próximos o iPhone do Elite x3, assim como os smartphones dos antigos Palms, e a despeito da semelhança não correspondem às mesmas intenções de aquisição. Os smartphones priorizam portabilidade, os Palms priorizam eficiência. Pode-se ainda usar a linha Galaxy da Samsung para fazer a mesma comparação, com o Galaxy S7 no lugar dos smartphones, e o Galaxy Note 7 no lugar dos Palms, pois o foco de ambos segue as mesmas diretrizes acima citadas.
Nadella essencialmente reconhece e leva para a Microsoft a convicção de que seus consumidores não são os mesmos da Apple. A Apple produz produtos que visam a emoção e não se baseiam na racionalidade. Seu consumidor é em grande parte o entusiasta, o admirador, mas também a pessoa que prioriza a qualidade da experiência individual, do uso pessoal de um smartphone. A Microsoft é mais efetiva produzindo equipamentos e softwares que visam os resultados. Sua proposta é mais profissional, com base na tal produtividade. Seu consumidor é o profissional, o “prosumer", que adquire seus produtos de forma racional. Essa é a proposta desse vindouro Surface Palm.
Se o Windows completo em aparelhos tão portáteis vai vingar já é outra história. A demonstração feita no final de 2016 é bem convincente https://m.youtube.com/watch?feature=youtu.be&v=ONI0zfEnBPU assim como os benchmarks do atuais processadores ARM top de linha. O ambiente controlado de desses testes deve ser levando em conta: uma coisa é um show, outra é a vida real. O risco de não ser tão bom assim existe. E parece que a Microsoft está disposta a arriscar.

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