A genética do paradigma


Estudar subjetividades virtualizadas a exemplo das ciências sociais, filosofia e artes, comumente cria tanto nos locutores quanto nos interlocutores uma sensação de solidez sobre os citados temas, de forma que os mesmo parecem existir naturalmente e anteriormente ao advento do ser humano. Obviamente isso é uma inverdade.
Analogamente, cérebros são máquinas, computadores bioquímicos. Memórias, sentimentos, idéias, vontades, aversões e outras atividades mentais surgem e se instalam por meio das sinapses criadas entre os neurônios da massa encefálica. A mente (humana e de outros animais) surge dessas interações sinápticas-químicas. Uma Virtual Machine, no jargão dev: uma calculadora funcionando sobre nível das linguagens, enquanto as linguagens funcionam sobre os códigos de outras linguagens, em camadas que se sobrepõem até chegar ao nível neural físico.
As virtualizações não cessam neste nível, dadas a nossa socialização em comunidades, que originam o consciente coletivo, e a grande capacidade da mente humana. Por meio da criatividade gerada por essa estrutura virtual, surgem supra estruturas, conceitos etéreos que nada tem de sobrenatural, que Richard Dawkins chamou de memes: cultura, religião, beleza, justiça, civilidade, nacionalismo. Todas essas idéias se replicam indefinidamente no meio memético, da forma mais simples que se possa imaginar: didática. Ao ensinar minha filha a falar inglês, invariavelmente acabo transmitindo conceitos como “existência”, “certo”, “errado”, “educação”. Criamos ferramentas virtuais como as línguas, as leis e a ética, e mundos imaginários como os delírios artísticos e os rearranjos dos seus movimentos internos, e nos apoiamos uns nos outros para acreditar em estruturas impossíveis naturalmente.
O interessante de se aprender a respeito da natureza virtual dos memes é saber que temos certo controle sobre eles: a despeito de sua possível rigidez podemos lidar com eles de uma forma plástica. Mas apenas numa certa medida, pois um grupo grande o suficiente de pessoas cria e replica memes de modo a edificar paradigmas colossais, como “Ocidente”, “estado-nação”, “mundo árabe”, “capitalismo”, e outros. As pessoas geram e se conectam coletivamente a esses paradigmas de tal forma que suas mentes se trancam gravitacionalmente a eles, astros orbitando astros maiores, e assim uma reprogramação severa se torna aparentemente impossível. Esses paradigmas, tal qual formas de vida complexas criadas por genes, parecem coesos, coerentes e indestrutíveis. Bem, não são.
Quantos ainda veneram o Panteão grego? Quantos ainda leem em alfabeto cuneiforme? Mudanças de longuíssimo prazo corroem estruturas paradigmáticas e diluem seus memes em novos consensos. Somos ocidentais democráticos, mas não somos gregos na fronteira persa. Darwinismo puro. Essas erosões estão sempre em andamento, e é de se esperar que em algum momento o nosso paradigma desmorone.

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