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21st Dec 2012 from Twitlonger

RUMA À NOVA POLÍTICA FEDERAL
Por Diego Viana | De São Paulo

Para Luiz Felipe de Alencastro, 2012 se insere na trajetória pós-redemocratização e esboça a futura cara do federalismo

VALOR ECONÔMICO, 21-12-2012

O destaque do Judiciário no cenário político brasileiro de 2012 tem raízes mais antigas, que remetem à redemocratização do país, na década de 1980. Segundo o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, o Congresso saiu enfraquecido da Assembleia Constituinte, em 1988, criando impasses cuja resolução dependeu da atuação da Suprema Corte. Assim, o conflito entre parlamentares e juízes, que estourou no fim de 2012, vem sendo fomentado há 25 anos.

Titular da cátedra de história do Brasil da Universidade Paris 4 (Paris-Sorbonne), Alencastro analisa os fatos do ano que termina a partir de sua inserção histórica. As eleições municipais, que sublinharam a ascensão de uma nova geração de políticos - Fernando Haddad (São Paulo), Eduardo Paes (Rio), ACM Neto (Salvador), entre outros -, são o indicativo de uma mudança gradual no equilíbrio regional da política brasileira. À medida que a hegemonia econômica de São Paulo é diluída e a abertura para o Pacífico desenvolve os Estados do Oeste, observa Alencastro, o Brasil tende a reforçar seu caráter federalista. Ainda assim, o historiador considera exagerada a aposta na ascensão do governador pernambucano Eduardo Campos a personagem político de envergadura nacional, em virtude de suas alianças pouco sólidas e dificuldade de penetração nas regiões mais decisivas do país.

No plano internacional, o historiador analisa a sobrevivência da moeda única europeia, após meses em que a possível implosão da zona do euro esteve em pauta, pelo esforço das autoridades do continente para manter um projeto político de longo prazo. Iniciativas como o plano de salvamento à Grécia e a paulatina integração bancária não são excepcionais: enquanto puderem, as forças políticas europeias farão todo o necessário para não retornar à fragmentação de outrora.

Valor: Neste ano, o STF esteve muito em evidência, não só por causa do julgamento da Ação Penal 470, mas também o voto das cotas, a união homoafetiva, o aborto de anencéfalos. Para alguns, a preeminência da Suprema Corte representa uma nova etapa da democracia brasileira. Como o senhor avalia o destaque do STF?

Luiz Felipe de Alencastro: Eu vincularia parte disso à paralisia do Congresso na saída da Constituinte. O Supremo tinha sido dotado de mais poderes. Já no fim da ditadura o sistema jurídico começou uma resistência à arbitrariedade. O STF passou a ser chamado pra arbitrar impasses que o Congresso não resolvia. Em alguns pontos, como as cotas, o STF avança. Noutros, é tomado por decisões contraditórias. Há coisas surpreendentes, como a crítica feroz do ministro [Carlos] Ayres Britto às coalizões.

Valor: O presidencialismo de coalizão é frequentemente responsabilizado pela dificuldade em fazer reformas, como a tributária e a política.

Alencastro: Quando se fala em reforma política, o tema das coalizões aparece sempre. Na declaração do ministro, a coalizão aparece como nefasta. Mas o Brasil é o único país do mundo com uma estrutura multipartidária, eleição presidencial de dois turnos e federalismo. Essa característica foi construída aos poucos e deu estabilidade política ao país, uma estabilidade que depende das coalizões. A evolução ocorreu assim e, veja só, funciona.

Valor:

Alencastro, professor de história na Sorbonne
Falando em paralisia do Congresso, o ano termina com conflitos entre o STF e o Legislativo, tanto no caso da cassação dos deputados condenados quanto nos royalties do pré-sal. Teremos disputas entre poderes no próximo ano?

Alencastro: De repente, o país acorda para o fato de que tem mais de 3 mil vetos presidenciais parados no Congresso. Talvez o lado bom desse conflito seja expor a inércia do Congresso, que não toma iniciativa legislativa, só reage a atos do Executivo. Não há uma dinâmica parlamentar capaz de avançar na consolidação institucional. Grande parte do problema da paralisia advém do famigerado plebiscito do regime de governo, em 1993. Desde 1988, com o fim da Constituinte, o país ficou paralisado com esse debate inútil, e não estava claro quais seriam as atribuições de cada Poder, já que poderíamos ter parlamentarismo ou presidencialismo, até monarquia. Foi um desastre, como a rodovia Transamazônica, um projeto faraônico cujas consequências sofremos até hoje.

Valor: E quanto ao julgamento da AP 470? Foi o processo mais longo da história do tribunal, ocupando cinco meses de trabalho. Envolveu a condenação de líderes políticos e a introdução de teorias jurídicas que surpreenderam as defesas.

Alencastro: Nas questões que abordei até agora, o que eu quis dizer é que o STF não é um saco de gatos, que age ao sabor das circunstâncias. O mesmo vale para o julgamento do mensalão, que foi um assunto muito complexo e tenso. Mas as decisões foram tomadas com toda transparência. As sessões foram acompanhadas pelo público. Não sou especialista, mas o que me deixa desconfortável é o fato de o tribunal agir em primeira e última instância, ou seja, não ter espaço para recursos. É o paradoxo do foro privilegiado: o réu é julgado só uma vez.

Valor: E do ponto de vista político? Não foi um evento trivial. Afinal, há quem interprete o caso como um ataque ao PT, como há quem considere que pela primeira vez a corrupção nas altas esferas está sendo combatida de fato no Brasil.

Alencastro: Basta ressaltar a postura da presidente. É a reação que todo governante deveria ter. Dizer: "Eu acato a decisão; sentença não se discute; os poderes constituídos têm que respeitar a autonomia do Judiciário". Nesta semana, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, reforçou essa afirmativa, a respeito da cassação dos deputados. Mas só para fazer uma nuance: essa reação ainda é um pouco inaudível, não foi francamente assumida pelo governo como um todo. Outra leitura importante foi esboçada pela ministra Gleisi Hoffmann, ao dizer que não se põe mais a corrupção debaixo do tapete. Até então, o governo estava na defensiva. Mas parece ter notado que tem mais a ganhar, e o país também, se assumir que os ministros indicados pelos governantes do PT para o STF são capazes de votar contra o partido. E que a Polícia Federal invade e faz apreensões no gabinete da Presidência. Nesse ponto, entre os Brics, o Brasil dá de dez. Na Índia, nada disso acontece; na Rússia e na China, menos ainda.

Valor: Agora que as acusações atingem Lula diretamente, com o caso de Rosemary Noronha e as declarações de Marcos Valério para procuradores, a presidente parece ter partido para a ofensiva. O ministro Gilberto Carvalho, aliás, chamou a militância para ir às ruas.

Alencastro: A função de Carvalho é um pouco simbólica. Vamos ver se o PT vai insistir nisso, mas já adianto que acho improvável. Afinal, até agora não foi a posição oficial do partido. Quando, no congresso do PT, avançaram uma iniciativa de fazer uma moção de solidariedade aos condenados pelo STF, o presidente do partido, Rui Falcão neutralizou. O próprio Lula não endossou isso.

Valor:

Mas de Paris ele deu a entender que vai reagir e pode se candidatar novamente...

Alencastro: Essa foi uma sacada política. Diria que tem a ver com certo maquiavelismo político de Lula, um sentido profundo que ele tem de como a política funciona. Ao dizer que vai voltar a se candidatar, o debate muda. Deixa de ser uma questão criminal, de abstração jurídica e moral. Torna-se um debate entre um líder político que é candidato e uma oposição que se estrutura para combatê-lo. Essa manobra passou despercebida, por algum motivo.

Valor: Neste ano, a presidente tentou resgatar a economia com a redução da Selic, corte nas contas de luz, planos para investimento e assim por diante. O governo Dilma lhe parece uma guinada muito grande em relação à era Lula?

Alencastro: Sem dúvida. Lula, quando assumiu, não quis mexer na política econômica. Pôs Henrique Meirelles no Banco Central e Antonio Palocci para negociar com o empresariado. O governo Lula está na linha de um debate interno que havia no MDB, depois no PSDB, em que se dizia que Serra era o homem da Fiesp e Fernando Henrique, da Febraban. Lula se propôs a ser ambos. Deu certo enquanto o mercado interno esteve em expansão. Dilma toma posse em outro contexto. Se conseguir consolidar a política de juros, pode ficar na história como a presidente que acabou com o juro alto, como Fernando Henrique é o presidente do real.

Valor: Em 2010, o senhor preferiu não falar da candidata Dilma, porque ela não era conhecida. Com dois anos de governo, qual é sua avaliação?

Alencastro: Em 2009, participei de uma reunião em que Lula apresentou sua candidata para cerca de 80 pessoas, jornalistas, empresários, intelectuais. Dei minha opinião de que a vitória seria difícil. Ela não era conhecida e, pior, nunca tinha perdido uma eleição. É na queda que se vê como uma pessoa se articula, atravessa a transição, as lições que tira. Ela desenvolveu, como mostram as eleições municipais, uma capacidade de articulação política impressionante. Outro aspecto é que o preconceito da classe média, que desserviu Lula, não existe com ela.

Valor: Mas é a presidente petista que interfere na economia; usa bancos públicos para obrigar os privados a baixar juros e propõe alterações de legislação econômica. Não é o tipo de atitude que deixa confortável a parcela conservadora.

Alencastro: Ainda assim, ela circula na classe média, que a vê como uma senhora diplomada, com a filha e o neto discretos; ela fala português como a classe média ensina os filhos a falar. Ou seja, Dilma faz o contrapeso à personalidade política de Lula, que provoca a paranoia udenista da classe média. Lembre-se de Jango discursando na Central do Brasil para os sindicatos. Um ponto grave da crise do mensalão, em 2005, era saber se Lula suscitaria uma mobilização popular para defender o governo, no estilo chavista, ou como faz Cristina Kirchner. A mobilização das massas criaria uma situação em que o equilíbrio democrático seria posto em questão. O diploma de economia, o fato de ser avó, isso tranquilizou a parte da opinião pública que temia a dimensão de liderança sindical de Lula. O espectro do trabalhismo. Lembre-se de Getúlio, a política do rádio, os comícios.

Valor: A imagem dela é bastante estruturada na ideia da gestora e comandante da economia, mas a economia não parece obedecer a seus estímulos. Sua imagem pode acabar trincando por causa do pouco crescimento?

Alencastro: É preciso lembrar que o crescimento está bastante decepcionante, mas a economia continua quase em pleno emprego, o déficit nominal é relativamente baixo, a relação dívida pública/PIB está em baixa. Pleno emprego, no mundo atual, não é pouca coisa. O balanço econômico de Dilma não é tão ruim assim. É claro que, se o país não crescer em 2013 e 2014, tudo muda e conversamos de novo.

Valor: A presidente lamenta que suas iniciativas para incentivar o empresariado não encontrem eco no próprio empresariado...

Alencastro: Vejo uma fronda de rentistas que rompem com o concerto Fiesp e Febraban de que falei sobre Lula. Quem passou décadas ganhando dinheiro com aplicações em títulos públicos não está satisfeito, está no prejuízo pela primeira vez em 40 anos, pelo menos. A Fiesp, sozinha, talvez não seja apoio suficiente, embora o presidente da entidade, Paulo Skaf, tenha afirmado que, se o dólar continuar acima de R$ 2, talvez seja possível reconstituir o tecido industrial. Ainda assim, no ano passado só se falava em desindustrialização, que a indústria brasileira era um tigre de Bengala, irremediavelmente extinta. Algo está mudando. Veja como todos estão tirando dinheiro de fundos conservadores e buscando outros ativos.

Valor: Sobre as eleições deste ano, o senhor já mencionou que o caso de São Paulo é de particular interesse. Em que sentido?

Alencastro: A política paulista sempre foi um fator de instabilidade nacional. É um grande Estado tanto industrial quanto agrícola. Sempre teve uma proporção importante de candidatos à Presidência e partidos originados no Estado, como o PSD. O Brasil vive um processo determinante de descentralização. Está entrando em um novo federalismo, mas ainda não se achou. O Brasil e os EUA são os únicos países realmente federais nas Américas. Na Argentina e no México, o federalismo está só no nome. No Brasil, São Paulo ainda tem hegemonia, mas o Centro-Oeste é dinâmico; a capital é Brasília; o Rio é uma capital importante. Não temos a tríplice função exercida pela capital na Argentina e no México, que truncam o federalismo. Está se desenhando um quadro novo no Brasil.

Valor: Que traços tem esse quadro?

Alencastro: Do ponto de vista partidário, ele ainda não está definido. O que será o novo federalismo, a composição de forças de um país mais povoado, com comunicações mais integradas, interesses mais espalhados, vai depender de como as coisas se darão nos próximos anos. É importante frisar que vai haver uma abertura para o Pacífico, que realça a importância do Oeste. É provável que em dez anos a cara da política brasileira seja bastante diferente.


Angela Merkel, chanceler alemã, e François Hollande, presidente francês: "A origem política do euro não pode ser esquecida. A crise atual pode ser o preço a pagar pela integração"


Valor: Essa evolução é perceptível na ascensão da nova geração de políticos, como Eduardo Campos, Aécio Neves, Fernando Haddad? Pode significar o fim da polaridade entre PSDB e PT?

Alencastro: No horizonte, acho que os partidos se mobilizam para renovar os quadros. No PT, surgiu Dilma, agora surge Haddad. Isso incentivou também Fernando Henrique a aceitar que deve haver uma renovação, o partido não pode se reunir só para as eleições. Fernando Henrique empurrou Aécio no meio da roda da política ao lançá-lo candidato para 2014. Essa iniciativa deveria ter vindo do próprio Aécio, que aliás já contemporizou.

Valor: Esses movimentos estão no contexto da descentralização de que o senhor falou?

Alencastro: A mudança está ocorrendo e, por enquanto, os nomes são esses. Outros ainda vão aparecer, é claro. Falando como historiador, vejo reflexos, nesse processo, do problema que havia na política ao fim da ditadura. Quando veio a anistia, duas gerações de políticos trombaram. A geração de Fernando Henrique teve de disputar espaço com a de Ulysses Guimarães. Esses últimos eram políticos de grande atuação no período pré-ditadura, mas ainda em atividade, porque na ditadura havia pouco espaço para a geração seguinte exercer política. Depois da geração de Leonel Brizola e Miguel Arraes, vinha outra, principalmente depois da eleição para o senado em 1974, que elegeu Marcos Freire, Pedro Simon, Orestes Quércia.

Valor: E o que caracteriza essa nova geração?

Alencastro: Ela não teve a perspectiva de um golpe. Mesmo Campos, que estava com a família no exílio. Em 1984, Aécio e Haddad tinham cerca de 20 anos. O que conheceram da ditadura foi a euforia do fim. Quem viveu essa época tinha esperança com a política brasileira, mesmo se depois veio o impeachment de [Fernando] Collor. Até porque o impeachment foi uma vitória da mobilização social e da imprensa. Não é a ascensão da ditadura, que a geração de Dilma e Lula viveu, quando parecia que o mundo estava se fechando, que não tinha válvula de escape. Era um golpe atrás de outro na América Latina. Aliás, acho que a ascensão de Eduardo Campos é muito superestimada. Ele tem alianças muito disparatadas e sua presença no Centro-Sul, onde se ganha ou perde eleição, é nula.

Valor: Ele não pode ascender a ser uma figura de envergadura nacional?

Alencastro: Acho muito difícil.

Valor: A vivência mais democrática pode explicar o foco em gestão, eficiência, metas...

Alencastro: É uma geração para a qual a consolidação democrática é um fato. Por mais antigovernista que seja, nenhum grupo político vai embarcar nos arroubos que aparecem aqui e ali, por exemplo, no Clube Militar. Penso também na instalação da Comissão da Verdade. Quero chamar atenção para o simbolismo de quando a presidente lançou a comissão chamando todos os presidentes eleitos. Eles foram - Collor, Sarney, Lula, Fernando Henrique - e tiraram foto.


População celebra a alteração do status dos territórios palestinos para "Estado observador não membro" na ONU: "O voto em favor da Palestina é uma grande derrota diplomática dos EUA"


Valor: Campos e Aécio já eram figuras do xadrez político. Agora, com a eleição para prefeito de São Paulo, surge também Haddad. Que lição tiramos dessa eleição?

Alencastro: Seria interessante saber em que medida o ProUni, invenção de Haddad, teve impacto nas periferias, onde sua vitória foi esmagadora. Fala-se nas cotas, mas o ProUni criou possibilidades de ensino superior para milhões de pessoas. O eleitorado negro votou em Lula sempre e em Dilma também. Isso tem um sentido histórico: esse eleitorado votava em Getúlio, por causa dos concursos públicos. Getúlio definiu a carreira no serviço federal, Correios, Banco do Brasil, Rede Ferroviária Federal. Com isso, abriu espaço para uma parte dos negros, pequena, mas existente, com diploma e qualificação profissional. Quando passaram nos concursos, estabeleceram uma pequena camada, com estabilidade econômica, que os estudiosos do movimento negro chamam de "velhos negros urbanos". O mesmo acontece com o PT, que implanta políticas afirmativas.

Valor: Essas políticas são definitivas? Uma grande vitória conservadora poderia revogá-las?

Alencastro: A batalha ainda está para ser vencida, mas veio para ficar. A estrutura social do Brasil continua muito desequilibrada, mas houve uma ascensão social nítida da população negra. Acho que não há como voltar atrás em qualquer governo. Veja como o governador [Geraldo] Alckmin, contra a vontade dos reitores das universidades estaduais, está propondo cotas na USP, na Unicamp e na Unesp. Isso mostra que a ação afirmativa veio para ficar.

Valor: A Europa começou o ano com um risco iminente de implosão da moeda comum. Com os pacotes para a Grécia e a intervenção do Banco Central Europeu, o euro não corre mais risco?

Alencastro: O euro, como a União Europeia, foi uma decisão política. Os dirigentes do continente vão se esforçar por manter a moeda comum enquanto puderem. O euro nasceu do acordo entre [o chanceler alemão Helmut] Kohl e [o presidente francês François] Mitterrand, quando a Alemanha se reunificava e precisava do aval francês. A Espanha entrou para a União Europeia ao cair a ditadura de Franco. O presidente Adolfo Suárez [1976-1981] deu grande autonomia para as províncias, por causa das pressões de bascos e catalães. Mesmo para províncias que não reivindicavam autonomia. Com isso, as caixas de financiamento regionais abriram demais a bolsa. A origem política do euro não pode ser esquecida. A crise atual pode ser o preço a pagar pela integração.

Valor: O euro continua sendo o fator de união no continente?

Alencastro: Continua. A tal ponto que hoje, na Alemanha, os socialistas, social-democratas e verdes votam com o governo conservador de [Angela] Merkel o aumento do crédito para a Grécia. É uma questão política, mas a situação política também evolui. O governo socialista francês, que acaba de assumir, é favorável aos eurobônus. Os social-democratas alemães também. Em setembro, a Alemanha terá eleições. Merkel é muito popular, mas sua coalizão está perdendo eleição depois de eleição. Talvez em setembro tenhamos um quadro político muito diferente na Europa, porque os social-democratas podem estar governando a Alemanha. Então, eurobônus podem se tornar viáveis.

Valor: A alternativa para o crescimento após a crise de 2008 parecia estar nos emergentes, sobretudo os Brics: Brasil, Rússia, Índia, China e, agora, África do Sul. Esboçou-se uma coordenação entre esses países, mas agora as economias estão desacelerando e as conversas murcharam. O acrônimo continua tendo interesse?

Alencastro: Jim O'Neill, que cunhou o termo, disse que o crescimento rápido não era determinante. O Brasil tem vantagens nesse grupo, como não ter arma atômica, não ter inimigo por perto. Isso habilita o país a uma política propositiva no Atlântico Sul, na África, em particular. Índia e Paquistão, Índia e China, Israel e Irã, não temos um quadro parecido e devemos tirar vantagem disso. Os Brics não conseguiram se impor como grupo internacional. O'Neill era contra incluir a África do Sul, que entrou por iniciativa do grupo, para dar dimensão geopolítica. Ela só tem 50 milhões de habitantes. Falta a dimensão fundamental dos Brics.

Valor: Parte da vitória eleitoral de Obama foi atribuída ao "voto demográfico": negros, latinos, mulheres, homossexuais, contra os republicanos vistos como representantes do "homem branco heterossexual e protestante". Há uma transformação demográfica mudando a face do mundo?

Alencastro: Quando Obama declarou que era favorável ao casamento igualitário, tinha acabado de sair uma pesquisa mostrando que 52% dos americanos eram dessa opinião. Os latinos, que votavam com os conservadores, começaram a votar democrata há pouco, porque os republicanos foram muito para a direita. Bush, no primeiro mandato, teve o voto latino, porque não era hostil à imigração. Os EUA estão se tornando um país mais liberal. Pelas "sitcoms", vemos que a ideia da família americana mudou ao longo das décadas. Por outro lado, a população está envelhecendo e as pessoas mais velhas são conservadoras. O eleitorado jovem vai diminuir progressivamente e os eleitores acima de 60 anos vão votar nos republicanos.

Valor: O furor das revoluções no mundo árabe parece ter amainado, dando lugar a uma guerra civil na Síria e uma disputa política intensa no Egito. É o fim da Primavera Árabe?

Alencastro: O dado importante é o fim histórico da política secular árabe, que vinha do [presidente egípcio Gamal Abdel] Nasser e outros. Há um retorno da dimensão religiosa nesses movimentos árabes. Países como o Egito tinham um problema de coesão nacional, e estavam sacudidos pela reintrodução da dimensão religiosa - que, por sinal, tem muito a ver com a crise interminável na Palestina. A Guerra Fria tinha consolidado o secularismo árabe. Depois, voltou o aspecto religioso.

Valor: O voto que deu à Palestina o status de observador na ONU foi saudado como uma grande inflexão. Que efeito prático pode ter?

Alencastro: Bibi Netanyahu está diante de uma eleição em que a extrema direita está bem ativa. O governo está sendo guiado por uma dinâmica de radicalização, inclusive porque Israel está em crise econômica. O voto em favor da Palestina é uma grande derrota diplomática dos EUA. A França votou a favor. A Alemanha e o Reino Unido se abstiveram. Talvez os EUA tenham de revisar sua diplomacia. Algo importante ocorreu. Os europeus, que têm mais experiência na região que os EUA, acham que a situação atual não pode continuar.


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As eleições e a ordem institucional
por Marcus Figueiredo | Para o Valor, do Rio

O ano que se encerra deixa algumas surpresas e grandes problemas políticos para 2013

Valor Econômico - 21/12/2012

As surpresas vieram com o resultado das eleições municipais e com o confronto anunciado entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. Na política, desde cedo aprendi, surpresas só acontecem porque negligenciamos fatos e análises ou porque praticamos "wishful thinking": a mãe de todos os erros na vida.

Os problemas políticos já caíram no colo da presidente Dilma Rousseff e ela tem mostrado jogo de cintura para acomodá-los sem traumas. Exceto um, que está fora de seu alcance: o impasse entre o STF e o Congresso.

Terminadas as eleições, as diversas forças políticas cantaram suas vitórias e a grande mídia deu ênfase às vitórias da dobradinha Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB), começando pela eleição de Marcio Lacerda (PSB) em Belo Horizonte seguida de vitórias importantes no interior do país e no Nordeste. Ao mesmo tempo ganhou destaque o desempenho do PSD, partido novo liderado pelo prefeito paulistano Gilberto Kassab. Ainda no campo dos destaques, a eleição de Fernando Haddad (PT), pela importância de São Paulo, e a derrota de José Serra (PSDB), pelas consequências para a conjuntura política nacional.

O maior problema político eleitoral para a presidente Dilma está em reconquistar o PSB e conquistar o PSD, leia-se Kassab

Nesse diapasão, ganharam manchetes ainda as vitórias do PDT em Curitiba e Porto Alegre, ofuscando o desempenho do PT no sul do país. Para completar a rodada de euforias, observamos ainda as vitórias do PSOL no Norte, de Virgílio Neto (PSDB) em Belém e, com pompas, a eleição de ACM Neto em Salvador, tida como a redenção do DEM. Nesse quadro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva só não foi ungido como o maior derrotado nas eleições municipais porque o PT ganhou na capital paulista.

A contabilização de vitórias e derrotas apenas nas capitais dos Estados deixa o quadro eleitoral aparentemente confuso, sem termos certezas sobre quem de fato ganhou e quem perdeu.

Na redistribuição nacional do poder político municipal, considerando-se a taxa de desempenho (2012 sobre 2008) na conquista de prefeituras, observamos que o partido "pivotal" - o PMDB - perde à taxa de 0,86, os partidos à direita perdem pouquíssimo - 0,99 - e os partidos à esquerda ganham, porém, pouquíssimo também. Essa contabilidade geral descreve uma extraordinária estabilidade e equilíbrio de forças. Assim, em 2014, Dilma e Aécio poderão ter, virtualmente, o mesmo número de palanques. O desequilíbrio se dará pela importância relativa das principais prefeituras e as alianças que a presidente Dilma e a oposição conseguirem mobilizar. Na base do governo hoje, entre as maiores capitais, estão Porto Alegre, Curitiba (ambas PDT), São Paulo (PT) e Rio (PMDB). E mais ainda Belo Horizonte, Recife e Fortaleza (todos do PSB), embora acenando com a independência ou "namoro" com Aécio Neves (PSDB). A oposição conta com Salvador (DEM) e Manaus (PSDB).

Esse quadro se completa e fica mais nítido examinado o desempenho dos partidos (2012 sobre 2008) para as Câmaras Municipais. Os vereadores, sempre esquecidos, têm importância estratégica porque são eles que têm relações diretas com a população. Essa importância cresce na ordem inversa do tamanho das cidades. Eles formam a base capilar das alianças estaduais, irradiando as dobradinhas que fazem as conexões dos deputados estaduais com os federais e destes com os governadores, senadores e candidatos à Presidência. Portanto, o apoio de partidos com bom desempenho na conquista de vereadores, hoje, faz crescer a base para a eleição de amanhã.

O maior problema político eleitoral para a presidente Dilma está em reconquistar o PSB e conquistar o PSD, leia-se Kassab. Ambos obtiveram excelente desempenho nas conquistas de prefeituras e vereadores. As taxas de desempenho para prefeito e vereadores do PSB foram positivas: 1,42 para prefeitos e 1,2 para vereadores. Não há taxa de desempenho para o PSD, por ser em 2012 a sua primeira eleição. Entretanto, conquistou 491 prefeituras e teve 4,7 mil de vereadores, taxas no patamar médio da distribuição geral.

A distribuição geral do poder municipal está resumida no gráfico na página ao lado. Nesse gráfico temos as taxas dos partidos pequenos de esquerda (EP - PSOL, PCB, PSTU e PCO), partidos médios de esquerda (EM - PCdoB e PMN), partidos grandes de esquerda (EG - PDT, PSB e PV), seguidos das taxas dos três maiores partidos, PT, PMDB e PSDM. No campo da direita seguem os partidos grandes (DG - PP, PSD, PTB, DEM e PR), os médios (DM - PPS, PSC e PRB) e finalmente os pequenos (DP - PSL, PRP, PHS, PTdoB, PTC, PSDC, PTN, PRTB e PPL).

O exame desse gráfico revela que todos os partidos da esquerda crescem. No campo da direita apenas os pequenos crescem e os demais têm taxas positivas, porém muito pequenas. Entre os três maiores, só o PT tem taxa de crescimento positiva. Entre os partidos grandes de direita, isoladamente, todos têm taxas de crescimento negativas. A taxa agregada dos partidos de direita só se torna positiva com a entrada do PSD.

Finalmente, cabe ainda ressaltar que o eleitorado no pleito de 2012 promoveu uma dispersão ainda maior do que a anterior, redistribuindo os votos para os partidos pequenos, que foram os que mais cresceram. Em termos absolutos, esse crescimento foi mais acentuado no campo da direita do que da esquerda.

Ação 470

Quando alguém chega ao palácio onde fica o STF, é recebido por uma estátua de concreto de uma senhora jovem com uma espada no colo e com uma tira de pano sobre os olhos. É o símbolo da Justiça e nós lemos: não olho para os homens que são falíveis, tenho na cabeça os direitos; mas tenho na mão o poder da espada. Ela se autoveda, mas nos lembra onde está a espada, à mão.

Esse é o ideal abstrato da Justiça - "justice as fairness", como ensina John Ralws em sua metáfora do "véu da ignorância" para que seja usado pelos poucos que decidem sobre o futuro de muitos - nós. Uma decisão do STF tem significado para todos, não apenas para os réus.

Uma decisão do Supremo Tribunal Federal tem significado para todos, não apenas para os réus

No teatro de um julgamento há três personagens: o acusador, o réu e o juiz. Aos dois primeiros não esperamos que vedem os olhos. Exigimos isso somente dos juízes. Tudo se torna uma farsa quando juízes não vestem o véu da ignorância. Para condenar ou absolver. A dúvida faz parte do véu da ignorância. De muito longa data sabemos que, para a felicidade da sociedade, é sempre melhor, na dúvida, absolver um culpado do que condenar um inocente. Os 11 juízes que compõem o STF têm esse preceito na ponta da língua. Ensinam isso em sala de aula e em palestras. Mas o difícil é viver isso: usar o véu da ignorância 24 horas todos os dias.

Quem se deu ao trabalho de assistir na TV Justiça ao STF, em plenário, julgando a Ação Penal 470, não apenas esporadicamente e muito menos nas coberturas televisivas, sai, lamentavelmente, com muitas dúvidas sobre o comportamento dos juízes. Ou a maioria formada nos pontos fundamentais.

Já nos primeiros dias de sessões ficou claro que o juiz relator acatou a tese da Procuradoria e não estava ali para aceitar o contraditório. A maioria do plenário acatou a metodologia do relator. Isso foi meio caminho andado a seu favor. A sua metodologia configurava a sua agenda. Quem estuda disputas retóricas colegiadas, com ou sem bases empíricas, sabe muito bem que quem controla a agenda aumenta a probabilidade de sucesso da opinião que a defende, no caso o juiz relator.

Felizmente assistimos também, ao vivo, às sessões do plenário, sem mediações de nenhuma espécie. Pudemos ver, então, juízes e juízas que não se intimidaram com as tentativas do juiz relator de desqualificar os votos dos que se opunham aos seus.

A simbologia da estátua da Justiça aos pouco foi perdendo a nitidez. Aos poucos víamos o juiz relator empunhando a espada em seus gestos e na rispidez com que costuma tratar seus pares juízes. Nem todos. Parece que alguns, para ele, são mais juízes que outros, principalmente aqueles que comungam com a mesma tese da Procuradoria. Esse grupo, ao longo das sessões, mostrou sistematicamente suas preferências em direção à espada e pouca vedação dos olhos. Nesta semana vimos o seu veredicto final: a cassação de deputados federais. A razão disso já foi esboçada. Não acreditam que a Câmara Federal casse os condenados.

Digamos que eu também não acredite. Qual é a importância da minha crença ou da crença de qualquer juiz? A resposta é nenhuma importância! Que tal inovarem para o bem, evitando o indesejável, a crise institucional sem solução, exceto com o uso da espada? Já vivemos isso antes. O resultado foram anos e anos de espada sobre nossas cabeças...

A Ação Penal 470 pode ficar para a história se o "véu da ignorância" for usado: os parlamentares federais poderiam usar uma tornozeleira eletrônica para monitorar seus passos a todo instante. E constitucionalmente cumprir suas obrigações e deixar o poder soberano a todos nós cumprir seu desígnio.

Marcus Figueiredo é professor e pesquisador do Iesp/Uerj

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