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16th Sep 2011 from Twitlonger

A invenção do consumo

Por Carla Rodrigues | Para o Valor, do Rio

Tese de doutorado mostra como pesquisa de opinião influenciou na formação do mercado consumidor brasileiro

Valor Econômico, Cultura e Fim de Semana, 16-09-2011

[Anúncios dos anos 50: aliadas, indústria, pesquisa e publicidade construíram a sociedade de consumo de massa durante o período JK valendo-se da emergência de campanhas do governo que incentivavam hábitos de higiene, como escovar os dentes todo dia.]

"Formação do Brasil Contemporâneo", clássico do historiador Caio Prado Jr., compõe, ao lado de "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, e de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, a trilogia de livros que "inventaram" o Brasil. São trabalhos publicados entre 1933 e 1942, momento de início do que viria a ser uma rápida transição entre um país rural e agrário para um país urbano e industrial. Por "invenção" entenda-se a fina capacidade de perceber como determinados processos históricos explicam problemas e desigualdades nacionais. "Inventar" não quer dizer criar um Brasil que não existe, mas, a partir de uma certa compreensão de dados históricos, propor uma forma de pensar o país. A invenção do consumo segue por esse caminho: se o consumo faz parte da vida e da economia das sociedades, o que teria sido inventado no Brasil dos anos 1950? A fina percepção, fornecida por pesquisas de opinião, de que determinados hábitos, comportamentos e práticas de consumo poderiam ser modificados a fim de estimular o processo de modernização do país.
O desejo de comprar produtos industrializados atendia ao apelo desenvolvimentista do slogan "50 anos em 5", do presidente Juscelino Kubitschek, com seus pesados investimentos na formação da indústria nacional e na entrada na economia internacional. Para criar novos hábitos, indústria, propaganda e pesquisa de opinião formaram o tripé dos pilares da sociedade de consumo de massa no Brasil, como mostra a tese de doutorado defendida por Silvia Rosana Modena Martini na Unicamp. Seu trabalho é um mergulho no acervo do Ibope, primeira empresa de opinião pública a se instalar no país e na América do Sul. Fundado em 1942, o instituto era apresentado como necessário à vida moderna.
Silvia mostra que a invenção da vida moderna se deu numa via de mão dupla: de um lado, a oferta de novos produtos industrializados; de outro, pesquisas de opinião que apoiavam a propaganda e geravam demandas inéditas. Fator importante para o estímulo ao consumo foi o forte incentivo ao crédito para a classe média entrar no mercado. Mesma oferta de crédito se registrou na primeira década deste século, quando novos consumidores das classes C e D ingressaram no mercado.
O crédito e o estímulo ao consumo fizeram parte da entrada do Brasil no rol dos países urbanos, com a economia baseada em indústrias e serviços modernos, para o qual os anos 50 foram decisivos. "Foi a década da virada, para a qual o discurso publicitário foi fundamental", diz Silvia. Embora a grande indústria tenha começado a chegar nos anos 20, foi no período pós-guerra que a industrialização se desenvolveu, vindo a se consolidar nos anos 70. Conforme o país se urbanizava, novos produtos se identificavam com o novo padrão de vida: automóvel, TV, aspirador de pó, enceradeira e geladeira, bens duráveis produzidos pelo capitalismo industrial que eram oferecidos como forma de entrada nesse recém-chegado estilo de vida, no qual a ascensão social passa a ser medida pela capacidade de consumo.
"As empresas recorriam ao Ibope para testar a aceitação de seus produtos no mercado", conta. A prática é comum no mercado até hoje e consiste em apresentar as novidades para grupos representativos dos consumidores em foco que avaliam o produto antes do lançamento. Assim, muito do que hoje parece ter sido fácil vender foi resultado de uma difícil e longa construção. "A indústria precisa produzir a demanda, última etapa da criação do produto", confirma o veterano publicitário Celso Japiassu, cuja carreira começou nos anos 60 e se desenvolveu durante o processo de construção do mercado publicitário no Brasil.
Silvia chama esse trabalho de convencimento de "processo traumático", usando como exemplo a pouca aceitação da Coca-Cola. Embora tenha sido bem recebida no início, a bebida só conseguiu se estabelecer como hábito entre os moradores de classe alta da zona sul carioca, interpretado pelo Ibope como parte do hábito de beber Cuba Libre. A Coca-Cola foi inicialmente rejeitada pelos demais públicos. "Os produtos vão sendo praticamente impostos", observa. Para isso, a indústria detinha o patrocínio dos programas de rádio, mídia mais influente na época, pelos quais massificava as ofertas de novos produtos. A pesquisa identifica que a propaganda se valeu do fato de que o governo usava o rádio para divulgar novas práticas de higiene - como escovar os dentes e tomar banho todo dia -, e a publicidade aproveitava para vender marcas de sabonete e creme dental.
Os primeiros brasileiros a entrar na modernidade foram os moradores dos dois maiores centros urbanos, Rio e São Paulo. Cariocas e paulistanos acreditavam que o consumo era o passaporte para a modernidade, ainda que para isso fosse necessário reforçar os valores da sociedade patriarcal da qual se parecia querer sair. O melhor exemplo era a ênfase no lugar da mulher como rainha do lar. Todas as propagandas eram dirigidas ao público feminino, numa aposta de que seriam decisivo na resolução de compra. Aqui, Silvia chama atenção para uma contradição. O público-alvo das campanhas era sempre a mulher - tendência que ainda hoje se confirma -, porque a aposta era de que ela seria o agente da mudança de valores da qual dependia a indústria para vender os novos produtos. Ao mesmo tempo, para que a mulher fosse o motor dessas mudanças, era preciso que a propaganda reforçasse o tradicional papel feminino de dona de casa.
Facilitava o fato de que as donas de casa eram principalmente as beneficiadas pelas maquinarias de conforto que ingressam no cotidiano das famílias: ferro e chuveiro elétrico, fogão a gás, liquidificador, batedeira, geladeira, aspirador, enceradeira, TV. Alimentos, até então vendidos a granel, passam a ser industrializados. Os legumes são enlatados, o consumo de refrigerantes e de chocolates multiplica-se, tudo isso oferecido em mais uma novidade, o supermercado, para o qual a venda, o armazém, o açougue e a quitanda vão perdendo terreno. Mulheres também eram o alvo da indústria de cosméticos, que chega para substituir os produtos caseiros e criar novos padrões de beleza. Marcas como Max Factor, Helena Rubinstein, Elizabeth Arden e Avon passam a ocupar o armário do banheiro e hábitos como pintar o cabelo para rejuvenescer se consolidam como sinal de modernidade.
Ao mesmo tempo, as mulheres também ofereciam resistências. Os alimentos enlatados, por exemplo, não tinham força para vencer a tradição do preparo fresco. Um exemplo citado por Silvia é o da carne enlatada. Em 1950, um fabricante americano encomenda ao Ibope uma pesquisa para sondar o mercado consumidor brasileiro. O instituto conclui que não haverá resistências ao produto e recomenda "propaganda intensa e constante, uma vez que se trata de um esforço excepcional para criar hábitos". Três anos depois, 20% dos moradores do Rio tinham o hábito de consumir diariamente alimentos enlatados. Silvia concluiu que, apesar do esforço para criar o hábito de consumo, a preferência ainda recaía sobre alimentos frescos e naturais.
Autor de "1958 - Ano Que não Deveria Ter Terminado", o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos é um estudioso dos anos 50 e suas características de transição entre o "Brasil jeca-tatu e o Brasil moderno", que surge, segundo ele, sem grandes conflitos. "É o período de uma passagem feliz. Éramos ingênuos e felizes." As pesquisas de opinião foram capazes de perceber essa ingenuidade. Silvia explica que detectavam uma tendência de comportamento. Uma vez identificada, o comportamento passava a ser vendido como valor já dominante na sociedade, associado ao novo e ao moderno. Já a felicidade foi canalizada para a construção do mito do "Brasil, país do futuro", slogan que Silvia encontrou nas agências de publicidade nos anos 40. Construiu-se, assim, também pela via da propaganda e da pesquisa, um ideal de país moderno para o qual o ingresso deveria ser pago em consumo.

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